Agronegócio francês vive transformação que envolve baixa produtividade, pressão de custos e desinteresse dos jovens
Linha de frente da resistência contra o acordo entre União Europeia e Mercosul, o agronegócio francês vem passando por uma transformação estrutural nas últimas décadas, que envolve queda da produtividade, aumento de custos e desinteresse das novas gerações pelo trabalho no campo.
Esse cenário impulsiona as fortes mobilizações dos agricultores da França contra o acordo, e explica declarações de executivos franceses, como Olivier Leducq, CEO da Tereos, uma das maiores cooperativas do país, contra os atuais termos do acordo, e de Alexandre Bompard, CEO global do Carrefour, contra a carne do Mercosul.
E o agro francês perdeu competitividade não só em relação a produtores de fora da UE, mas também para outros países do bloco, como Polônia e Romênia.
Se forem desconsideradas as bebidas, como vinhos e espumantes, a balança comercial de produtos agroalimentares da França tem déficit desde 2014. Só o setor de carnes tem saldo comercial negativo desde 2000, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Estudos Econômicos da França (Insee).
Esses déficits são decorrentes de uma dependência crescente das importações dentro do mercado comum europeu. Desde 2015, as trocas agrícolas da França com outros países do bloco estão com saldo negativo, enquanto com nações externas, há superávit.
“Quem cresceu na Europa [em produção de commodities] foram os países recém-integrados, do Leste Europeu. Eles têm custos mais baixos. Quem entra com produto livremente [na França] é o polonês e o romeno”, diz Marcos Jank, coordenador do centro Insper Agro Global. No comércio de milho, no qual a França é exportadora líquida, o valor das importações da Polônia cresceu 22 vezes entre 2018 e 2022, e da Romênia, 63%.
Essa perda de competitividade reflete um modelo agrícola de baixa escala, regional e com mais regulações, segundo especialistas. Nesse contexto, os jovens vêm perdendo o interesse pelo campo. De 2010 a 2020, a quantidade de pessoas da própria família trabalhando tempo integral nas fazendas caiu 38%, segundo o Insee.
Conforme um observador do agronegócio francês, por falta de sucessão familiar, muitos fazendeiros vendem suas terras a outros produtores. Com isso, houve na última década um ligeiro aumento de concentração fundiária, elevando a área média das propriedades de 55 hectares em 2010 para 69 hectares em 2020.
Mas não se compara à extensão das fazendas na América do Sul. No Brasil, o tamanho médio registrado no último Censo Agropecuário (de 2017) também era de 69 hectares, mas a realidade é díspar: enquanto 2.450 fazendas com mais de 10 mil hectares têm 15% da área agropecuária brasileira, mais de 600 mil propriedades com menos de 1 hectare respondem por 0,1% da área rural do país.
“Na França, há basicamente propriedades pequenas. E não se consegue ser competitivo se não tem economia de escala”, diz Jank. “Outro fator é que aqui temos de duas a três safras ao ano, lá só tem uma.”
Para um executivo de empresa francesa, que falou sob anonimato, a competitividade brasileira mostra “o poder da diluição do custo fixo”. Ainda que existam na França cooperativas que poderiam reduzir esse peso, através do compartilhamento de máquinas, por exemplo, o modelo enfrenta dificuldades. “As cooperativas lá têm déficit”, observa uma fonte.
Produtos
As maiores restrições a agrotóxicos e a produtos veterinários na UE também são frequentemente citadas como fatores que elevam o custo de produção da agropecuária na França.
De fato, a UE já baniu, por razões ambientais e de saúde, diversos produtos que ainda são usados no Mercosul, como o inseticida clorpirifós e o herbicida glufosinato de amônio, e os antibióticos monensina e flavomicina, que melhoram o desempenho dos animais.
Porém, organizações francesas citam outros produtos já proibidos no Brasil como se ainda estivessem em uso. O Institute d’Elevage (Idele), de pecuária, por exemplo, disse em nota de novembro que o Brasil ainda estaria usando como promotores de crescimento a bacitracina e a virginiamicina, que foram proibidos em 2018. Em 2022, o Insee mencionou em relatório que o Brasil estaria usando os agrotóxicos carbendazim e fipronil. Contudo, naquele ano, o primeiro foi vetado e o segundo teve sua principal forma de uso proibida.
Mas, mesmo considerando que o Mercosul ainda usa produtos proibidos na UE, executivos consultados pelo Valor avaliam que esse não é o principal fator para a diferença de produtividade, já que a Europa não tem a mesma quantidade de pragas registradas nas regiões tropicais.
Na pecuária, a diferença de custos é agravada porque o gado bovino na França é criado em confinamento, sem pasto como na América do Sul. “O custo de suplementar o tempo inteiro com ração é diferente”, observa outra fonte.
Segundo a consultoria internacional Agribenchmark, o custo de produção da carne bovina no Mercosul entre 2018 e 2020 foi 40% menor do que na Europa — se considerar apenas o Brasil, a diferença ficou em 60%. A França, particularmente, tem um custo de engorda até maior do que seus pares europeus, como a Alemanha.
Concentração de mercado
Outro fator que torna o setor de carne brasileiro mais competitivo, segundo análise do Insee, é a concentração das exportações do produto nas mãos de três empresas (JBS, Minerva e Marfrig), já que elas conseguem “obter economias de escala significativas”. Além disso, a desvalorização das moedas do Mercosul “tornam a carne sul-americana mais barata quando chegam à França”, diz.
Não à toa, o setor pecuário francês foi um dos que mais se reorganizaram no país — e o que mais resiste ao acordo UE-Mercosul. Entre 2010 e 2020, o número de propriedades na França dedicadas à criação de gado caiu 3,6%, respondendo por dois terços da diminuição do número de fazendas no país. A área total destinada à pecuária só não caiu mais porque houve uma concentração das propriedades.
Apesar disso, o Brasil enfrenta dificuldade em exportar todo o volume de carne da cota Hilton — cortes nobres que podem ser vendidos à UE com tarifa reduzida. Neste ciclo de 1 julho de 2024 a 1 de junho de 2025, em que o Brasil tem direito de exportar 8,9 mil toneladas pela cota, apenas 14% do volume foi preenchido até 1 de novembro. “As dificuldades [para exportar à Europa] são tão grandes que os exportadores preferem exportar para a Ásia”, observa Jank.
O acordo UE-Mercosul prevê uma cota com tarifa reduzida para 100 mil toneladas de carne bovina dos países do bloco sul-americano para toda a UE. “O acordo está trabalhando não com uma liberalização de tarifa, mas com aumento de cota, o que engessa o Mercosul. Isso, no fundo, é um bom negócio para os franceses”, avalia o embaixador José Alfredo Graça Lima. Para ele, o Mercosul estaria perdendo oportunidade de aproveitar um crescimento do mercado local.
Na visão do embaixador, que atuou na Organização Mundial do Comércio (OMC) e no início das negociações com a UE, a posição francesa não reflete apenas essa crise. “Desde o primeiro momento, em 1999, a França nunca foi favorável. O setor europeu sempre se enquadrou na política agrícola comum, protecionista, para manter os preços num determinado nível.”